Morreu o Beethoven dos botequins

Zé Luiz Peixoto (primeiro à direita) e os 14 no Alvaro's, no Leblon.
Zé Luiz (de azul, à direita) e o Grupo dos 14 no Alvaro's. Texto e foto: Marcelo Dunlop

 

Sem vela e com algum choro, morreu na tarde de sábado, 23 de setembro de 2017, um dos mais geniais boêmios que o Brasil conheceu. Era o Beethoven dos bares. Chamava doutor José Luiz Peixoto e me chamava de “viadinho” ou outro apelido carinhoso.

Viu tudo, conheceu meio mundo, bebeu todas, em dose dupla e com gelo. Quando mais novo, organizou espetáculos no Maracanã, beijou a mão do Papa, fez o diabo. Se era bom pianista eu não sei, duvido muito. O elo com o grande Beethoven era a vasta cabeleira grisalha, que ele tentava eternamente domar, sem sucesso, enquanto orquestrava, com fina harmonia, qualquer conversa no botequim. Gênio!

Na última sexta-feira, tive o prazer de rachar com ele um picadinho no Alvaro’s, durante reunião etílica do seu estimado “Grupo dos 14”. Ao adentrar seu velho amigo Sérgio Cabral, ele respeitosamente o saudou: “Tem fodido muito, Sérgio?”. O boa-praça Cabral engatou logo uma história clássica: “Como dizia a sábia Leila Diniz, esse negócio de pau duro é do Méier para lá”.

E assim o papo fluiu, como era de costume com Zé Luiz à mesa. Seus dedos tamborilavam de um lado a outro, de lá para cá e cá para lá, contando uma para o amigo da cabeceira daqui, e, numa virada inesperada, dando uma sacaneada no colega do canto acolá. Como trilha sonora constante de seu recital, o tilintar do gelo no uísque e o coro dos risos, muitos risos.

Presidente de honra do finado bloco carnavalesco Vaca Totó (amada amante do Boitatá), doutor José Luiz Peixoto foi cremado com uma camisa da agremiação com os dizeres: “Fui”.

No concorridíssimo velório, com a presença de sambistas, advogados, ex-atletas olímpicos e, claro, donos de bares, lá pelas tantas sua companheira, Lígia, a musa da música de Tom e Chico, abriu espaço para relembrarem histórias dele, generoso tabelião que resolvia qualquer pendenga de herança e espólio para quem precisasse. Era de dia um mestre das entrelinhas, e à noite um boêmio desalinhado.

Duas dele:

Em Salvador, chegou doido por um acarajé. Foram até uma baiana reconhecida pelo seu tempero, que quis saber o gosto do freguês para pimenta: “Quente ou frio, meu rei?”. Ele, olhos nos olhos da quituteira: “Meu amor, apimenta como se o cu fosse o seu.” E tome gargalhada.

A outra foi no Rio. Recém-separado, José Luiz Peixoto foi convidado por um amigo do peito para partirem para um show do Johnny Alf, com alguns colegas do outro. Topou na hora. Sem intimidade, ficou quieto, chupetilhando seu uísque, ouvindo o papo. “Ah, acabamos de voltar de Praga, vimos isso, fizemos aquilo etc”. Uma senhora então disse: “Em Praga é obrigatório comer cachorro-quente”. Ele não resistiu: “Foi até Praga comer cachorro-quente? Vai tomar no seu cu”.

Era o “vai tomar no seu cu” mais doce do Rio de Janeiro.

Saímos do Caju com a honrosa missão de só ir para casa depois de 76 chopes, um para cada ano de vida do guru Zé Luiz. Se falhamos foi porque naquela mesa está faltando ele.