7 histórias nada esportivas que ajudam a explicar o Rio de Janeiro

Por Marcelo Dunlop

Desenho do Café Lamas em caneta bic por Paulo Mariotti.
Desenho em caneta bic por Paulo Mariotti.

 

O Rio de Janeiro não é para principiantes, como disse o sábio. Para ajudar os forasteiros recém-chegados à Rio-2016 a entender o povo da cidade, vão aí sete histórias, vividas em sete bairros, contadas por sete cobrões.

De Jaguar, no Flamengo:

O célebre cartunista estava chupetilhando seu chope no Café Lamas, quando se deu a cena, narrada em sua biografia (o livro é um porre, no ótimo sentido). “Teve aquele lance do Maia, garçom memorável, que pisou numa casca de banana – na parte da frente do Lamas vendiam-se frutas – e caiu estatelado, de pernas para o alto, mas sem derramar um só copo da bandeja. O bar aplaudiu de pé a performance; fui um dos primeiros a puxar as palmas.”

De Verissimo, em Copacabana:

O escritor Luis Fernando Verissimo foi visitar o conterrâneo Mario Quintana, que sempre que vinha de Porto Alegre se hospedava no Hotel Canadá, ali no posto 4, perto da Santa Clara. Ao passar num dos túneis de Copacabana, o poeta disse que a coisa de que mais gostava no Rio de Janeiro era entrar em túnel. Diante da surpresa, arrematou: “É a única maneira de descansar da paisagem.”

De Marcos de Vasconcellos, no Jardim Botânico:

O arquiteto residente no JB tinha um conhecido cujo velho motorista, depois de 20 anos de ótimos serviços prestados, decidiu do nada deixar o emprego. Conta aí, mestre: “Chamava-se João, era um homem grave, de pouquíssimas palavras, só respostas e recados, nunca fez qualquer declaração, deu um palpite, uma confidência, nada. Um dia pediu as contas. O patrão, acostumado com a presença do empregado sintético, mecânico, quis saber o motivo da decisão. Vou para casa, disse ele quase calado. Ao retirar-se, depois de um ligeiro aperto de mão e de recusar proposta de aumento e outras regalias, devolveu as chaves, os documentos do carro e saiu. Quando chegou na porta, antes de abri-la, voltou-se e disse seco:  – Meu nome é César.”

De Nei Lopes, na Freguesia:

Como nasce um samba carioca? Catone da Portela (1930–1999) desfez o insondável mistério, em histórica entrevista a Nei Lopes. O então jovem sanfoneiro de Ouro Preto aprendeu o ofício na escola Vai se Quiser, na Freguesia, num papo com o sambista Ruço.

Catone: – Como é que a gente arruma esse negócio pra fazer samba?
Ruço: – Olha, tens namorada?
Catone: – Não, senhor.
Ruço: – Então tu arrumas uma namorada. Arrumas uma namorada, briga com ela e aí você faz uma música, faz lá ao teu modo, pega essa sanfona aí que você diz que tem jeito e você faz uma música como você brigou com ela, que você está sentindo saudades, não sei o quê.

Catone fez o que o experiente sambista aconselhou: “Arranjei uma tal de Maria, uma crioula que ninguém queria. Era ruinzinha! Aí, eu: como é que vou brigar com a primeira namorada? Arrumei um brigueiro com ela e fui pra casa. Lá eu fiz o meu primeiro samba:

Vai, meu amor que eu não te quero mais
Não, não me sai da lembrança esse maldito dia que tu me deixou
Perdão você não terás
Tens um coração de pedra…

Coitada da Maria.

De Eduardo Galeano, na Vila Isabel:

O uruguaio recordou, em seu glorioso livro “Os filhos dos dias”, a clássica história de Noel Rosa flagrado num de seus bares favoritos “na noturna hora das dez da manhã”. “Noel cantarolava uma canção recém-parida. Na mesa havia duas garrafas. Uma de cerveja e outra de cachaça. O amigo sabia que a tuberculose estava matando Noel Rosa. Noel adivinhou a preocupação em seu rosto, e sentiu-se obrigado a dar uma lição sobre as propriedades nutritivas da cerveja. Apontando a garrafa, sentenciou:
– Isso aqui alimenta mais que um prato de boa comida.
O amigo, não muito convencido, apontou a garrafa de aguardente:
– E isso aqui?
E Noel explicou:
– É que não tem a menor graça comer sem ter uma coisinha para acompanhar.”

De Cláudio Manoel, no Maracanã:

O humorista ia ao estádio desde pequeno com o coleguinha Bussunda. “Tem uma história curiosa de um cara que a gente chamava de Seu Suborno. Era o suborno mais indigno da história. A gente comprava ingresso de geral e no intervalo tinha uma passagem para a arquibancada. A gente entrava na geral porque não tinha dinheiro, e então juntava umas moedas, e dava para o cara abrir uma passagem. O cara era subornado por, sei lá, três reais! A soma das moedas de todo mundo certamente não dava cinco! Ele ficava malocado para não dar bandeira. Quando o cara não aparecia a gente metia a cara na grade e ficava gritando: ‘Ô seu Suborno! Seu Subornôoo…’”.

De Mario Prata, no Leblon:

Saideira, outra de bar. Mario Prata, Eric Nepomuceno e um certo Francisco Buarque de Hollanda bebiam no Final do Leblon, idos de 1972. Os três conversavam sobre escrever um musical para o teatro, mas o Prata disse que só faria o roteiro, pois tinha ouvido cego. Chico Buarque duvidou. Mario dizia que desafinava até com “Parabéns para você”. Impossível, teimava Chico. E pediu para ouvir. Olhos nos olhos, Mario Prata então limpou a garganta e mandou ver, o compositor atento aos graves e agudos. Até que...
“Cantei a música toda, inclusive a segunda parte que a minha memória foi buscar não sei onde. O bar foi ficando em silêncio sem que a gente percebesse. Quando terminei, umas 30 pessoas se levantaram e aplaudiram. Não a minha voz, mas o Chico que, para eles, aniversariava. Alguns, menos tímidos, foram até a mesa e o cumprimentaram com abraços. Teve uma menina que deu um boné para ele. O dono do bar, o seu Manuel, disse que a rodada era por conta da casa.”
Fim da história: apareceu um bolo, velinhas, a rua quase fechou e a festa varou a noite – com o amigo de Chico desafinando até de madrugada.

Fechou o bar Azeitona

Por Marcelo Dunlop

O botequim Azeitona & Cia na rua Dias Ferreira, no Leblon: RIP.
O botequim Azeitona & Cia na rua Dias Ferreira, no Leblon: RIP.

Fechou o bar Azeitona, agora de vez. E o século XX pode descansar em paz. Era o último botequim “das antigas” do Leblon. Do antigo Leblon, digo.

Foi ali, debaixo daqueles toldos velhos, que o general João Figueiredo interrompeu o chope que levava a boca, para cuspir desaforos para uma professora da mesa ao lado que falava de história: “Vocês não fazem a menor ideia de nada! De nada!”.

E nada de intolerância, seguia o chope. Em outro episódio menos indecente, certo dia uma bela moça conversava com um senhor babão quando seu bustiê se soltou, libertando todo aquele conteúdo. O velho, como o ex-presidente militar, também não teve pruridos, e mandou, o olhão arregalado: “É nessa hora que eu me orgulho de ser um mamífero!”.

Era um pé-limpo, com a sola suja, onde se via de tudo, menos pose. A música comia solta, violinos, maus cantores, sambas. Como alguns namoros, muitas composições nasciam e morriam ali (algumas para o bem da MPB). Por lá molharam a goela o imortal João Ubaldo Ribeiro, Miele, Fagner, Marcelo D2, Maria Rita, José Aldo, a turma do basquete, do futebol, do judô, do Jiu-Jitsu, vários atletas e ex-atletas olímpicos. Um mais mentiroso do que o outro. O cliente mais famoso de todos eles, o que mais bebia, claro, era o dono, José Otávio, vulgo (vulgaço) Azeitona.

Quem melhor definiu o grande Azeitona, que hoje está aposentado do bar mas não dos uísques, foi um tricolor que tentou mudar o canal para ver um jogo do Fluminense enquanto o Azeita assistia a uma pelada qualquer de basquete. “O senhor é um grosso! Não devia ser dono de bar, mas de uma borracharia!”. A resposta, com o perdão do meu francês, foi sutil: “É? Então vem cá que enfio uma borracha no seu cu”. E o tempo fechava. Mas no dia seguinte, o bar abria.

Não teremos saudade de tudo, como se pode notar. Mas fica a homenagem e o agradecimento por todos aqueles chopes mornos, petiscos medianos e atuações sofríveis do Flamengo na TV. Éramos felizes e sabíamos.