A Ilha da Nostalgia

Ilha do Urubu no Rio Foto de Rod Nunes
Ilha do Urubu, em junho de 2017. Foto: Rod Pereira Nunes.

 

João Máximo foi quem melhor definiu o triste destino do maior estádio do mundo (1950–2017): “O Maracanã já foi do povo, tentou ser da elite e hoje é de ninguém”, resumiu o mestre, em crônica publicada outro dia na revista “Socialismo e Liberdade”, editada pelo rubro-negro Cid Benjamin.

Mas e a Ilha do Urubu, de quem seria? Bem, de todos menos alguns, como toda casa rubro-negra – ainda que por ora esteja abrigando alguns e não todos.

A pergunta que mais escutei essa semana, tirando “Vai me pagar não?”, foi: “E o novo estádio na Ilha, que tal?”. Pergunta assim tão sumária tem que ter a necessária resposta, e respondo então: é um campo perfeito para os nostálgicos, um lugar para voltar no tempo.

Há quantos anos você não via o Flamengo ali tão perto, as feições dos craques tão humanas, os gritos entre os jogadores tão audíveis, sem falar no cangote do bandeirinha tão próximo de um elogio? A Ilha do Urubu, antigo “Estádio dos Ventos Uivantes”, é um convite tamanho aos sentidos que você quase deixa escapar o principal: o olfato.

Ah, o cheiro da grama! Os antigos cronistas falavam disso como uma dádiva dos jogos pré-Maracanã, uma sensação extinta para sempre. Mas ele existe na Ilha. Desci os degraus do setor norte, disfarcei, fechei os olhos e puxei o ar. E eu então senti, sim, eu senti, o aroma doce da relva em meio à noite fria da Ilha do Governador.

Minha viagem no tempo não parou por aí (é, a cerveja tava boa). Lembrei que foi num cenário com proporções compatíveis que o saudoso Jaime de Carvalho inovou, ao trocar o paletó pela camisa rubro-negra idêntica às dos jogadores, e ao formar a famosa charanga, em 1942. Papo antigo, de tempos tão remotos que nem existia uma ponte entre o Rio e a Ilha.

Nessas priscas eras, por sinal, um público de 14 mil torcedores, como na estreia de Flamengo x Ponte Preta de 14 de junho de 2017, era um número bastante aceitável. É verdade, irmãos flamengos e irmãs flamengas, nossa torcida já foi bem menor, mas era divertido.

Eram tempos em que a estátua do descobridor português Pedro Álvares Cabral, na Glória, amanhecia decorada por réstias de cebolas a metro, quando o Vasco perdia. Ou que o nosso goleiro Amado Benigno pulava o alambrado para sair na mão com os torcedores do popular São Cristóvão, em 1926, como atesta uma saborosa crônica do sócio Henrique Teixeira de Macedo. Tempos em que a sede do clube, pasmem, tinha somente uma ducha – e de água fria.

(Mario Filho conta na bíblia “Histórias do Flamengo”, página 132, versículo 5, que certa vez Anibal Varges tentou convencer os demais flamengos a investir num chuveiro de água quente. Os remadores então esperaram a noite e depositaram seis pedras gigantes de gelo na caixa d’água. O pobre Anibal, claro, chegou lépido e fagueiro para tomar seu banho matinal. Dizem que deu um berro tão pavoroso que acordou o presidente logo ali no Palácio do Catete. Que delícia eram as tretas do século 20.)

Enfim, trata-se de um campo aconchegante que lembra a infância do Flamengo, e talvez por isso a molecada se sinta tão bem por lá. Basta ver o Vinicius Junior que, com um lençol e uma assistência, fez sua melhor partida pelos profissionais, ajudando o time a quebrar sequência de quatro jogos sem vitórias.

Contudo, por mais que o moleque Vinicius se mostre valioso para a nação rubro-negra, há outros jovens que podem render muito mais ao Flamengo, um montante incalculável, muito além dos parcos 45 milhões de euros.

São os garotos que sentam no banco, mas do nosso lado, na arquibancada. Como um amigo me demonstrou outro dia, por mais rubro-negro que sejamos, nenhum torcedor tem o pulmão e a energia sequer próximos daquela fatia de torcedores dos 15 aos 35 anos, muitos dos quais estudantes ou jovens mal-assalariados sem grana para bater ponto no estádio, ainda mais com os preços cobrados hoje em dia. (Na faixa etária de cima, o cara pode ter o gogó de um barítono ou batucar como um mangueirense, mas normalmente está ocupado com um copo cheio na mão, o que atrapalha tudo.)

Como torcedores, ficamos agora na torcida para que o Flamengo crie logo um setor para os rubro-negros menos abonados, estudantes, biscateiros, assim como anunciou agora o Internacional, que vai credenciá-los a partir de um simples comprovante de renda.

E aí sim, com o estádio repleto e reverberando em cima dos rivais, sentiremos não mais saudade ou nostalgia, mas a alegria de fazermos parte da bonita história do clube, numa Ilha do Urubu do povo, da elite e de todo mundo, como o Flamengo sempre foi e sempre será.