Alfredinho, Bip Bip e o pitaco do Galeão Cumbica

Claudia Ferreira Bip 1

Salve, Alfredo,

Sei lá se você conseguiu acompanhar tudo daí de cima (tava meio nublado), mas a opinião foi geral: seu funeral foi do caralho!

Veio deputado, gari, senador federal, crianças, morador de rua, cineastas, baleiros e babás. Nada mal para um humilde corretor de fundos públicos nascido em Bangu, hein? O que mais tinha, claro, eram seus favoritos: músicos e malucos. Às pencas e fantasiados. Até os vizinhos malas apareceram.

O Rubem Braga um dia escreveu que em todo bom velório deveria haver olhos vermelhos e risos sem remorsos, e foi o que se viu no Bip Bip. Teve choro, claro, mas também muito samba, risos e boas histórias.

Seu esquife ficou no centro do bar, deitadão sobre a mesa, e a fila dos seus amigos ia até o meio da rua. Houve um incauto, parece que mineiro, que ficou desconfiadíssimo: aquela farra só podia ser bloco, e o caixão, fantasia de Segunda-Feira de Carnaval. Fora de sacanagem, ele quase apertou seu nariz para acreditar, o coitado. Você ia rir pacas, se pudesse.

Na roda, armada do lado de fora, alguém improvisou em cima do clássico: “Sei que vou morrer, não tenho medo / Levarei saudades do Alfredo…”. De lá, ao som de surdo, cuíca e pandeiro, saiu geral para o sepultamento no São João Batista, indescritível – ainda bem que filmaram. Depois dali, metade da turma ainda foi para a Avenida ver a sua Mangueira campeã, com o samba lindo composto por seus meninos. Que dia, hein!

Alfredo, você estava certo, mais uma vez: no belo livrinho “Bip Bip, um bar a serviço de alegria”, na página 12, você previa: “Amigos dizem que o Bip Bip sou eu, com o que não concordo. Outro dia, um frequentador me pediu, até comovido, que eu fosse ‘imorrível’”, escreveu você, já agradecendo a Matias Bidart, Zé Paulo Fernandes, Ari Miranda e outros por manterem o bar aberto nas suas eventuais ausências, antes de completar: “O Bip somos todos nós, e vai continuar assim para sempre”. Sábias palavras!

O bar segue cada vez mais lindo – teve aniversário do Matias outro dia lá – e tudo do jeitinho que você gostava. De novidade, apenas uma: o esporro democrático. Na falta da sua voz de trovão para clamar por silêncio, agora todo mundo manda todo mundo calar a boca. Está lindo.

Claudia Ferreira fotos Bip 3

Dureza, dureza mesmo, é chegar ao bar e dar de cara com a cadeirinha de plástico, ali na ponta direita, sem você. Na quinta-feira, o Emiliano não aguentou.

Mas descobriu-se um senhor antídoto para a saudade, à venda ali mesmo no bar, por parcos 35 reais: o livro sobre o Bip já citado. No miolo da obra, há uma sensacional entrevista com você, feita pelos autores Chiquinho Genu, Luís Pimentel e Marceu Vieira. São 55 páginas de papo, e é fácil ouvir sua voz.

E o livro é ainda mais valioso para quem não conheceu você. Lá está o seu primeiro dia no bar, como freguês tarado pela batida de maracujá, quando você saiu para comprar Cibalena na farmácia e acabou atraído por fogos de artifício (era a inauguração do Bip!). Ou seus tempos como comerciante na AJ Melo Assessoria de Comércio Exterior, em 1985, quando corruptos de todos os lados te aporrinhavam, até que você desistiu. Suas desventuras na Rússia! E, claro, suas tiradas. Exemplo: “Ser dono de bar é uma merda. Não se pode ir a show, nem a cinema, muito menos ao teatro – e só se consegue trepar de manhã!”

Alfredo, é paixão e é jura: por toda sua meninada, pela memória de sua Tia Freirinha, pelo funcionário do Bip que roubou você e depois virou evangélico, pelo caloteiro que bebeu 4 mil dólares no bar e jamais pagou, pelo seu tio Cônego Vasconcelos – aquele que um dia desceu do altar e expulsou um grupo de cadetes aos tapas por fazerem zorra na igreja, em Bangu –, pelo Roni Cócegas, sim, o Cocada, o próprio, o Galeão Cumbica, que um dia passou por você e deu a dica de que o Bip estava à venda, pela moça bela que pousou um dos seios no seu ombro para aliviar a conta, pelos chatos que você detectava de longe, como ninguém: o bar seguirá. Afinal, o bar somos todos nós, e vai continuar assim para sempre – com o mesmo espírito, sem concessões e modernices.

No máximo, no máximo, com o retorno das esplêndidas batidas de maracujá.

Que venham mais 50 anos! Fique em paz.

Beijos
do Marcelo Dunlop

Fotos: Claudia Ferreira/ Bip Bip (2019)
Fotos: Claudia Ferreira/ Bip Bip (2019)

Alfredinho e a dedicatória

Alfredinho, do bar Bip-Bip. Foto: Dudu Sarmento.
Alfredinho, do bar Bip-Bip. Foto: Dudu Sarmento.

 

 

Alfredinho Jacinto Melo sabia que ia morrer, não sabia o dia.

Coerente, fez questão de ignorar os versos de Ataulfo, que bem cantava: “Eu quero morrer numa batucada de bamba / Na cadência bonita do samba”. Alfredinho, jamais. Nunquinha que ele iria morrer no meio da batucada, provocando algazarra, correria entre os músicos, barulheira na vizinhança e, pior de tudo, o fim do samba.

Alfredinho virou melodia na tarde do último sábado, na poltrona de sua casa em Copacabana, cercado pelos livros que gostava.

O fotógrafo Fabio Rossi foi quem nos apresentou, em 2002. “Suspeito que ele gostou de você…”, sorria Rossi. Perguntei por quê. “Olha, você chegou mamadaço, ficou parado na frente da geladeira, agarrou ele e ainda mandou: ‘Afonsinho, seu bar é o melhor’. E ele em vez de te comer no esporro, ficou rindo”. Mas aprendi rápido, tanto o nome certo como as sábias lições do Alfredinho. “Botequim é para sair bêbado, e não para chegar bêbado”, era uma de suas favoritas.

Foi um dos caras mais livres que já conheci, pois viveu a vida que escolheu, como bem definiu uma amiga. Ensinou a gente, em 75 anos de vida e quase 40 de bar, a odiar a miséria, e não os miseráveis. E, claro, a amar a nossa música.

Eu curtia ficar até a hora do bar fechar, quando esperava colher histórias e confissões entre as saideiras. Só que a bebedeira era tanta que eu sempre esquecia tudo no dia seguinte.

“Meu orgulho é que toda a nata do samba passou por aqui”, me disse ele um dia. “Dos que eu gosto, só faltou aparecer mesmo o Martinho e o Zeca Pagodinho”.

Num desses dias, 25 de novembro de 2016, coisa de 3h da matina, apareceram duas jovens argentinas querendo conhecê-lo. Ficaram conversando sobre os rumos da América Latina e coisas e tais, e acabaram comprando um livro para que ele autografasse. Alfredinho se esmerou na dedicatória, carinhoso. Elas, emocionadas, pediram que ele lesse as palavras para elas. Alfredo começou, e logo parou. Depois me disse: “Porra, nem eu entendi a merda da minha letra!”. E eu quase rolando de rir na calçada de Copa.

O pior escritor de dedicatórias do país será velado nesta segunda-feira no bar Bip-Bip, até as 15h. O enterro será no São João Batista, às 16h.

Obrigado por tudo, Alfredo.

A história e a receita do sucesso da Confeitaria Colombo

Por CJ Dunlop

A gravura, reprodução de um desenho de Henrique Cavalleiro, do comêço do século, mostra o antigo prédio ns. 34/36 da rua Gonçalves Dias, constituído de loja e sobrado.
A gravura, desenhada por Henrique Cavalleiro, mostra o antigo prédio 34/36 da rua Gonçalves Dias, no Centro do Rio.

 

Foi numa segunda-feira, dia 17 de setembro de 1894, que se inaugurou, na rua Gonçalves Dias, o estabelecimento comercial que viria a se transformar no “resumo da história intelectual e galante da cidade" – a Confeitaria Colombo. Fundaram-na dois lusitanos: Manoel José Lebrão e Joaquim Borges de Meireles.

Segundo Leôncio Corrêa, a fundação da Colombo pareceu providencial. Nela foi estabelecido o terreno neutro, onde os corações desavindos se reconciliavam e fraternizavam. Valeu pelo desabrochar do primeiro sorriso, largo e sereno, do Rio de Janeiro, após luta tremenda da Revolta da Armada, que abrira chagas nas almas e nos corações, ao que parecia, de difícil cicatrização.

Conquanto fosse bem arranjado, não logrou o estabelecimento, desde logo, desbancar as suas congêneres, principalmente a Confeitaria Pascoal, que continuou por muitos anos em pleno fastígio, como “ponto de reunião do mundo elegante, dos paredros da terra, dos grandalhões da literatura, do alto comércio e das finanças”.

No fim do século, porém, dois fatos coincidentes fizeram deslocar para a rua Gonçalves Dias o cenáculo literário que vivia na rua do Ouvidor: o primeiro foi quando, em 1898, passando Meireles a sócio comanditário, ficou Lebrão à testa da firma. Espírito progressista, tratou de mudar a refinação de açúcar e a fábrica de doces para outro local. Em seguida, reformou as instalações, transformando o estabelecimento num grande e luxuoso bar-confeitaria.

O outro fato é que, quase ao mesmo tempo, deu-se uma desinteligência entre Olavo Bilac (Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac) e o gerente da Pascoal, culminando na mudança do excelso poeta para a Colombo, com toda a sua roda de amigos.

A gravura acima é reprodução de um desenho de Henrique Cavalleiro, do começo do século. Mostra o antigo prédio números 34/36 da rua Gonçalves Dias, constituído de loja e sobrado. O salão – conforme descreve Luiz Edmundo – era pequeno. As mesas também. De grande, na casa, só a tabuleta, fora, toda em lona, esticada num painel enorme sôbre um “chassi” de madeira, pesando no gradil da sacada de ferro.

Junto a uma das portas de entrada, bem à vista, havia um empadário de ferro e cristal e, mais para o centro do salão, um outro, ambos aquecidos, ambos a fumegar entre nuvens ligeiras de fumaça, porque empadas, empadões, maravilhas, croquetes e pastéis, bem como toda a gama de petiscos da regional pastelaria, só se compreendiam, no tempo, quando a ferverem, a queimarem...

Cada empadário – é ainda Luiz Edmundo quem conta – mostrava, à porta, o “seu” Cérbero, montando guarda, o olho aritmético em vigia, para que o freguês não abusasse dos erros de soma, lesando a caixa. Cérbero, no entanto, não intervinha na escolha do manjar; olhava sòmente, contava, fiscalizava. Se lhe indagavam, porém:

– Quanto a maravilha de siri?

Respondia:

– Dois tostões.

E, na hora de pagar, quando ouvia o freguês:

– Creio que comi oito pastéis...

Corrigia:

– Comeu nove...

No sobrado do edifício ficavam os dormitórios dos empregados e no prédio contíguo, de número 32, que se comunicava com a Confeitaria, estava localizado o armazém de comestíveis, inaugurado em fins de 1898.

 

 

(C. J. Dunlop, Rio Antigo, vol II, 1956)

 

 

 

 

O dia em que Noel Rosa não encontrou Rubem Braga em Mangueira

Por Marcelo Dunlop

Na porta do Bip-Bip, estico o ouvido em meio à confusão para tentar escutar o samba que sai da mais majestosa birosca do Rio de Janeiro. Fora do bar, uma multidão faz alvoroço na rua Almirante Gonçalves. É uma quinta-feira atípica no estabelecimento do seu Alfredo em Copacabana. Papo comendo solto em voz alta, palmas calorosas no lugar do estalar de dedos que virou etiqueta no lugar para não perturbar os vizinhos. Tem até o breve discurso de dois políticos, em cima de cadeiras na calçada. Época de eleições.

Dentro do boteco, cotovelo com cotovelo, tocam juntos alguns dos músicos mais promissores do samba carioca, sem darem a menor pelota para a importância do encontro. É que Gabriel da Muda, Tiago Pratinha, Tomaz Miranda, Marcelo Professor, Pecly e outros tantos têm aquele teor de não humilhar a ninguém, só querem tocar e cantar numa boa.

A melodia lembra coisas de Mangueira, e me vem à mente uma antiga história ocorrida há quase 80 anos. Ou não ocorrida, na realidade. O dia em que o destino armou para que dois gênios brasileiros se encontrassem pela primeira e única vez: o músico Noel Rosa e o escritor Rubem Braga.

Foi no século passado, em 20 de janeiro de 1936. Um dia também atípico em Mangueira, temperado com discursos de políticos. A escola de Cartola resolveu ousar e exaltar um compositor de outra escola. Não era um cantor qualquer. Noel Rosa, da Vila Isabel, autor do sucesso então recente “Palpite infeliz”, que falava na Mangueira, teve seu repertório cantado por toda a quadra. A homenagem teve direito à presença do prefeito Pedro Ernesto, que interrompeu a batucada para dizer algumas palavras. Lá pelas tantas, um morador emocionado soltou o grito: “Meus senhores, a Mangueira é um morro só!”. O brado deixou um jovem repórter de 22 anos arrepiado, com os olhos úmidos. Era Rubem Braga, que estava lá levado por amigos. O escritor relembrou a ocasião em crônica de 1987, “Visita ao morro da Mangueira”, que está no livro “As boas coisas da vida”:

“Noel Rosa era esperado, mas não apareceu, mandando dizer que estava doente. (Ele morreria tuberculoso em 1937).”

Foi por pouco. E o que será que o sambista então com 24 anos conversaria com o jovem poeta de Cachoeiro? Rubem Braga, amante da boa comida e das coisas simples da vida, poderia ganhar Noel no papo e a noite se estenderia até de manhã, entre goles de cachacinha e conversas sobre frutas suculentas, mulheres e passarinhos. Encantado com aquele novo amigo e suas histórias, quem sabe Noel não aceitasse, vá lá, comer alguma coisinha, só hoje. Quem sabe não passasse a se alimentar melhor com o tempo, diminuindo os danos da esbórnia. Noel Rosa e Rubem Braga seriam então melhores amigos. Comporiam juntos até, e Noel lamentaria muito a morte do amigo fiel, em dezembro de 1990.

Ou daria ruim? Noel e Rubem sairiam de Mangueira já como velhos companheiros, no carro com Cartola, Carlos Cachaça e Zé com Fome. (todos magrinhos, devia caber). Encantado pelas melodias fáceis do menestrel da Vila, Rubem o seguiria em suas serestas e orgias por meses. Cairia doente e perderíamos precocemente nosso sabiá da crônica.

Quase oito décadas depois, Noel Rosa é túnel, Rubem Braga é escola, Pedro Ernesto é medalha e eu sou um cara parado na porta do Bip. Um sujeito com uma única aflição: a de cruzar com várias pessoas erradas nessa vida – e ninguém ter a decência de me apresentá-las.

Ao chegar em casa, no entanto, descubro que as coisas são ainda mais complexas. Leio num livro do pesquisador Sérgio Cabral que o Braga, acredite, papou mosca: Noel estava presente em Mangueira naquele mesmo dia – os jornais registram. O sabiá não sabia. O destino porém deve saber o que faz.

(Por Marcelo Dunlop)