Os impressionantes números do último baile da Ilha Fiscal

Ilha Fiscal INo último ano do Império, as cordialíssimas relações e a tradicional amizade que sempre uniu nosso País ao Chile foram festejadas com mútuas demonstrações de estima e simpatia. Em Valparaíso e Santiago, Governo e povo chilenos esmeraram-se em obsequiar a oficialidade do nosso cruzador Almirante Barroso, em viagem de circunavegação. O Brasil, sentindo-se tocado por tais provas de amizade e confraternização, achou a ocasião apropriada para manifestar à Nação amiga o seu profundo reconhecimento, quando, a 11 de outubro de 1889, aqui aportou a esquadra chilena, capitaneada pelo encouraçado Almirante Cochrane, sob o comando do capitão-de-mar-e-guerra Constantino Bannen, em derrota da Europa para Valparaíso.

Foi um mês de recepções, espetáculos de gala, banquetes, excursões e piqueniques, em que a oficialidade chilena foi alvo das maiores atenções do povo brasileiro e que culminou com um deslumbrante baile na Ilha Fiscal, na noite de 9 de novembro.

Impossível é descrever o mágico encanto – noticiou o Jornal do Comércio – que oferecia a ilha, os encouraçados, as lanchas e os botes sem conta, com fachos iluminados de cores diversas, que coalhavam o mar e o cruzavam em todas as direções; a barca Ferry, que conduzia os convidados, garbosamente enfeitada e iluminada a giorno, tendo nas extremidades as letras “C” e “B”, engenhosamente arranjadas com pequenos copos de cores; o cais, também iluminado e repleto de povo, bem como a ponte com seus arcos e candelabros de gás artisticamente dispostos, e na qual tocava durante o embarque dos convidados uma banda de música em uniforme de gala.

Ilha Fiscal IIEra de êxtase a impressão da ilha, toda cercada de bandeiras chilenas e brasileiras e feericamente iluminada por milhares de lâmpadas elétricas e de lanternas venezianas de cores e feitios variados, produzindo belíssimo efeito entre as decorações e enfeites. O serviço de iluminação elétrica fora executada pela casa Leon Rodde & Cia., sendo a intensidade da luz superior a 14.000 velas.  (Nota do Editor: Vela é o nome de antiga unidade de medição de intensidade luminosa. Foi usada no século XX, e abolida entre 1946 e 1948, quando foi introduzida a candela (cd). Uma vela equivale a 1,019 cd. Não confundir com potência/watt; o watt é uma unidade de potência, não comparável à vela.).

As maiores notabilidades da política, diplomacia, finanças, imprensa, da burocracia e da fidalguia da época lá estavam, ostentando suas vistosas casacas, fardas e crachás luzidios. Grande era também o número de senhoras, com ricas e luxuosas toilletes.

Suas Majestades Imperiais chegaram às 9 e meia. D. Pedro II trajava farda de Almirante; a Imperatriz D. Teresa Cristina, um lindo vestido preto; a Princesa Isabel, também de preto, corpinho alto, bordado a ouro e diadema de brilhantes; na casaca do Príncipe D. Pedro Augusto reluzia a condecoração do Cruzeiro.

Dançava-se em em seis salões, enfeitados com bandeiras nacionais e chilenas, âncoras douradas e prateadas, espelhos e festões. Nos ângulos das duas asas do edfício ficavam os coretos para as orquestras.

“Maior do que o esplendor da ornamentação, da iluminação e das toilletes das senhoras – escreveu Viriato Correia – foi o esplendor da mesa”. Fornecera o serviço a Confeitaria Pascoal, que faturou 3.000 sopas de vinte e duas qualidades, 50 peixes grandes, 800 latas de lagosta, 800 quilos de camarão, 500 tigelas de ostras, 100 lata de salmão, 3.000 latas de ervilhas, 1.200 latas de aspargos, 400 saladas diferentes, 200 maioneses, 800 latas de trufas, 12.000 frituras, , 3.500 peças de caça miúda, 1.500 costeletas de carneiro, 1.300 frangos, 250 galinhas, 500 perus, 800 inhambus, 50 macucos, 300 presuntos, 64 faisões, 80 marrecos, 12 cabritos, 600 gelatinas, 300 pudins diferentes, 800 pretos de pastelaria, 400 de doces de ovos, 400 de fios de ovos, 20.000 sanduíches, 14.000 sorvetes, 50.000 quilos de gelo, 10.000 litros de cerveja, 188 caixas de vinhos diversos, 80 caixas de champanha, 10 de vermute francês e italiano, 16 de licores e conhaque, 100 caixas de água mineral, além de frutas, flores, etc. Consta que esse bufete custou o fabuloso  preço de 50 contos!  (Nota do Editor: 50 contos de réis, ou 50 milhões de réis, corresponderiam hoje a cerca de 5,2 milhões de reais.).

Pouco depois de 1 hora da madrugada serviu-se a lauta ceia e, ao champanha, o Visconde de Ouro Preto, presidente do derradeiro gabinete ministerial do Império, levantou o brinde honra à República do Chile, ocasião em que subiu ao ar enorme girândola, seguida de uma salva de 21 tiros, dada pela fortaleza de Villegaignon.

Era dia – 6 horas da manhã – quando se retiraram os últimos convidados da memorável festa. A ilha parecia ter sido teatro de alguma batalha, sendo encontrados entre os despojos 13 lenços de seda, 9 de linho e 15 de cambraia, 8 claques, 16 chapéus  de cabeça, 9 dragonas, 8 raminhos de corpete, 3 coletes de senhoras, 17 ligas...

O baile da Ilha Fiscal, a que compareceram mais de 4.000 pessoas, foi a última e a mais suntuosa festa do Império.

 

 

 

(Publicada originalmente no livro "Chronicas", de C. J. Dunlop, 1973)

O livro que (quase) explicou o Flamengo

O livro do historiador Renato Soares Coutinho sobre o clube do Flamengo: leitura imperdível para estudiosos de futebol.
O livro do historiador Renato Soares Coutinho sobre o clube do Flamengo: leitura imperdível para estudiosos de futebol.

Em janeiro, enquanto meus amigos gastavam as férias torcendo para o Negueba ser emprestado, lancei-me a atividades mais produtivas, como traçar o livro “Um Flamengo grande, um Brasil maior”, do historiador Renato Soares Coutinho, lançado em 2014 pela editora 7 Letras. Entre um capítulo e outro, inflamado, ficava torcendo para o Negueba ser emprestado.

É um livraço, como diria Elio Gaspari. Não pelo tamanho, já que não chega a 200 páginas, calmamente navegáveis. O mérito de Coutinho está em aproveitar com competência a bola que vinha quicando desde 2002, quando Ruy Castro levantou esta, no seu monumental e obrigatório “O vermelho e o negro”:

“Um dia, quando se mergulhar de verdade nos fatores que, historicamente, ajudaram a consolidar a integração nacional, o Flamengo terá de ser incluído. Durante todo o século XX, ele uniu gerações, raças e sotaques em torno de sua bandeira. Ao inspirar um rubro-negro do Guaporé a reagir como um rubro-negro do Leblon (com os mesmo gestos e expletivos, e no mesmo instante), o Flamengo ajudou a fazer do Brasil uma nação”.

Pois o professor e doutor em História mandou a pelota certinha na gaveta, ou nas estantes. A partir da releitura minuciosa do “Jornal dos Sports” (1931–2010), ele percebe como a massificação do Flamengo, tanto no Rio de Janeiro, então capital federal, como em todo território nacional, teve pouco ou nada a ver com títulos conquistados, e sim com a imagem de “time do povo” que o clube soube abraçar num momento em que o Brasil de Vargas buscava se modernizar, nos anos 1930.

Muito graças a técnicas elementares de marketing do presidente José Bastos Padilha, avô do diretor de “Tropa de Elite”, e das crônicas de Mário Filho, bem como do espírito de Gilberto Cardoso, o Flamengo virou símbolo, paixão e conforto para os trabalhadores e torcedores das classes mais baixas. O livro defende que partiram dessas três principais figuras as escolhas acertadas que fizeram do clube uma nação, numa época em que o futebol brasileiro começava a se profissionalizar e acompanhava os rumos políticos e culturais do país. E quem foi sagaz e fechou com o certo cresceu e ganhou os corações brasileiros, da Gávea ao Chuí.

Minha passagem predileta é quando são citados os principais intelectuais decisivos para que o Flamengo pulasse os muros do clube da zona sul e se deixasse amar pelo povão, e se faz justiça ao compositor Wilson Batista, posicionado no mesmo patamar de um José Lins do Rego, um Ari Barroso ou um Nelson Rodrigues. São páginas para se ler cantarolando, em especial se você curte samba.

E há, claro, trechos para se ler em silêncio respeitoso. Como quando o Flamengo enfim anuncia a contratação do cracaço Leônidas da Silva – cedido pelo Botafogo sem empecilhos no dia 10 de julho de 1936. Como o livro explica, a presença do “Diamante Negro” causava desconforto entre sócios e dirigentes alvinegros. Chame de elitismo, preconceito, racismo, atraso ou amadorismo; no fundo, o nome verdadeiro disso é burrice, a inextinguível burrice humana, que jamais foi exclusiva daquela época e muito menos do Botafogo – eis a Federação Carioca que não nos deixa mentir.

Mas, se nem as atuações de Paulo Victor ganham nota dez nos jornais, também se pode achar imperfeições no livro. Por isso o “quase” lá em cima no título.

O autor se arrisca ao insistir num argumento que, ao meu ver, não consegue provar: a de que o Flamengo precisou apagar sua história antes dos anos 1930 para ganhar a massa. O Flamengo teria se reinventado, rescrito sua história de 1895 a 1930 e forçado uma vocação natural para ser popular que jamais existira em seu passado de “clube fidalgo”. Não sei, mas uma agremiação onde remadores perambulavam pelados pela sede, entre outras libertinagens, era mesmo assim tão fidalga? Se o clube era frequentado pela elite, nada prova que suas cores não fossem vistas com simpatia por cariocas de todos os cantos. Pelo contrário, aliás.

Em 1917, João do Rio, notório autor de “A alma encantadora das ruas”, cronista do povão e dos vagabundos do Rio, decidiu testemunhar e relatar, no jornal “O Paiz”, o que era um jogo do Flamengo. E partiu com amigos para ver uma partida contra o Fluminense, que reuniu mais de 6 mil espectadores e onde “500 automóveis buzinavam, bufavam, sirenavam”. É João do Rio que indica, já em 1917, a tal vocação natural do clube que sempre deixou ser amado:

“E o Clube de Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos esportes (…) O povo encheu-se de simpatia”. Mais adiante, arremata: “Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.” O placar? Mengão 4 a 1, como de hábito.

Mas o livro é realmente muito bom, e um dos melhores que já li sobre o Flamengo, certa vez apelidado de “o clube que não se explica”. Renato Soares Coutinho talvez tenha sido quem chegou mais perto até hoje.