Paul McCartney não tem vez no Braseiro da Gávea

Por Marcelo Dunlop

Baixo Gávea. Foto: TravelHunter.com
Baixo Gávea. Foto: TravelHunter.com

 

Quando a crise convida ao pessimismo ou ameaça descambar na depressão, está na hora de lembrar Otto Lara Resende. O jornalista mineiro, exímio contador de histórias, defendia que não havia maneira mais sensata de buscar o equilíbrio durante as travessias turbulentas do que alinhar a alta literatura e a baixa gastronomia. Livros, bons livros, para rebater o amargo das manchetes diárias, e bares, bares mequetrefes, para molhar a goela com generosas doses de otimismo.

Contava Otto (1922–1992), numa crônica célebre, que durante uma crise com tanques na rua e greve geral ele e o amigo Rubem Braga pegaram o carro em Ipanema com destino certo: o Bar Luís, botequim na rua da Carioca de onde puderam avaliar todos os contrastes da situação, em especial entre o chope claro e o escuro. “O bar estava aberto e o chope, esplêndido”, avalizou o escritor. Hoje ainda não há tanques no Rio de Janeiro, só torpedos dos pilantras de sempre no Congresso, mas o clima pesado da política pedia um refúgio.

A semana começava, e lembrei então que era uma segunda-feira diferente. O Braseiro da Gávea, um dos pé-limpos mais queridos do Rio de Janeiro, reabriria após seco e tenebroso inverno. Contra o baixo astral, zarpei para o Baixo para recuperar a fé nas boas coisas da vida. De longe, já avistei rostos camaradas procedentes de todos os cantos da cidade. Um amigo de Copacabana trazia o violão guardado na caixa. Outro, da Gávea, estava de muletas, com o joelho recauchutado. Um outro vinha do Panamá. Otto e o velho Braga aprovariam o chope, que estava esplêndido. Mas eu não estava lá para beber nem para conversar, e sim para traçar planos grandiosos para a nação e restabelecer a confiança em nossas instituições. Mal cheguei, portanto, e abri a nossa improvisada sessão extraordinária com uma criativa frase de efeito: “Meus amigos, a coisa está feia.”

A réplica de um dos excelentíssimos presentes não tardou: – É porque você não viu aquele grupo de moreninhas ali. E logo um aparte: – Esse é o Braseiro, o bar zero a zero mais famoso do planeta! Um dos nobres conferencistas pediu um aparte para elogiar o novo CD do Moacyr Luz, em especial o samba de Moa em parceria com Nei Lopes. A canção, “Na vaselina”, defende “que o Rio ainda é o Rio / Mudou, mas ainda persiste aquela norma antiga / Que toda grande bronca, confusão e briga / Fica no bar…”

Outro ilustre palestrante pediu a palavra e inquiriu se os demais casados ao chegarem em casa ainda teriam de lavar a louça. Antes que o tema descambasse para marca de detergentes, um honorável presente foi buscar mais chopes.

Era preciso descongestionar a pauta, e o assunto agora era Cultura Estrangeira: argentina ou brasileira, que mulher é a mais bonita? Relações Exteriores: “Porra, o Alfredinho do Bip-Bip viajou para Cuba!” Não, ele não vai abrir a primeira filial de seu pé-sujo em Havana. Liberalização das drogas: “Soube do casamento do Dudu no sábado? Puseram uns barbitúricos nas bebidas dos coroas, ficou geral muito doido!” Cultura e Teatro: “Não foi a ex dele que fez uma ponta numa peça do Zé Celso onde ela por duas horas fingia tocar siririca no palco?”

Eis que, porém, uma situação grave demandou confabulações e o ensaio de medidas drásticas. Não havia mais tulipas de vidro. Um breve inquérito concluiu: o chope comprado no balcão viria em lamentáveis copos de plásticos. Formou-se rapidamente uma comissão e debateu-se o que fazer. Devolução do dinheiro? Panelaço? Mostrar a língua? Decidiu-se em bloco beber assim mesmo.

Bateu a fome, e reparei na quantidade de travessas de picanhas mal-passadas e linguiças fumegantes que iam e vinham pelas mesas do restaurante, abarrotado de atrizes, DJs, músicos e outros antenados moradores do bairro. O que Paul McCartney, o artífice da campanha mundial “Segunda-feira Sem Carne” por um planeta melhor, acharia de nós? Uns bárbaros sem coração, na certa.

Lembrei disso e pedi um coraçãozinho de galinha para viagem. Tenho certeza de que até o velho beatle compreenderia nosso momento difícil e não ficaria na bronca. Despedi-me dos camaradas e fui para casa assobiando, de alma lavada e cabeça erguida, pronto para enfrentar a crise até o caos, como o sábio Otto ensinava.

O livro que (quase) explicou o Flamengo

O livro do historiador Renato Soares Coutinho sobre o clube do Flamengo: leitura imperdível para estudiosos de futebol.
O livro do historiador Renato Soares Coutinho sobre o clube do Flamengo: leitura imperdível para estudiosos de futebol.

Em janeiro, enquanto meus amigos gastavam as férias torcendo para o Negueba ser emprestado, lancei-me a atividades mais produtivas, como traçar o livro “Um Flamengo grande, um Brasil maior”, do historiador Renato Soares Coutinho, lançado em 2014 pela editora 7 Letras. Entre um capítulo e outro, inflamado, ficava torcendo para o Negueba ser emprestado.

É um livraço, como diria Elio Gaspari. Não pelo tamanho, já que não chega a 200 páginas, calmamente navegáveis. O mérito de Coutinho está em aproveitar com competência a bola que vinha quicando desde 2002, quando Ruy Castro levantou esta, no seu monumental e obrigatório “O vermelho e o negro”:

“Um dia, quando se mergulhar de verdade nos fatores que, historicamente, ajudaram a consolidar a integração nacional, o Flamengo terá de ser incluído. Durante todo o século XX, ele uniu gerações, raças e sotaques em torno de sua bandeira. Ao inspirar um rubro-negro do Guaporé a reagir como um rubro-negro do Leblon (com os mesmo gestos e expletivos, e no mesmo instante), o Flamengo ajudou a fazer do Brasil uma nação”.

Pois o professor e doutor em História mandou a pelota certinha na gaveta, ou nas estantes. A partir da releitura minuciosa do “Jornal dos Sports” (1931–2010), ele percebe como a massificação do Flamengo, tanto no Rio de Janeiro, então capital federal, como em todo território nacional, teve pouco ou nada a ver com títulos conquistados, e sim com a imagem de “time do povo” que o clube soube abraçar num momento em que o Brasil de Vargas buscava se modernizar, nos anos 1930.

Muito graças a técnicas elementares de marketing do presidente José Bastos Padilha, avô do diretor de “Tropa de Elite”, e das crônicas de Mário Filho, bem como do espírito de Gilberto Cardoso, o Flamengo virou símbolo, paixão e conforto para os trabalhadores e torcedores das classes mais baixas. O livro defende que partiram dessas três principais figuras as escolhas acertadas que fizeram do clube uma nação, numa época em que o futebol brasileiro começava a se profissionalizar e acompanhava os rumos políticos e culturais do país. E quem foi sagaz e fechou com o certo cresceu e ganhou os corações brasileiros, da Gávea ao Chuí.

Minha passagem predileta é quando são citados os principais intelectuais decisivos para que o Flamengo pulasse os muros do clube da zona sul e se deixasse amar pelo povão, e se faz justiça ao compositor Wilson Batista, posicionado no mesmo patamar de um José Lins do Rego, um Ari Barroso ou um Nelson Rodrigues. São páginas para se ler cantarolando, em especial se você curte samba.

E há, claro, trechos para se ler em silêncio respeitoso. Como quando o Flamengo enfim anuncia a contratação do cracaço Leônidas da Silva – cedido pelo Botafogo sem empecilhos no dia 10 de julho de 1936. Como o livro explica, a presença do “Diamante Negro” causava desconforto entre sócios e dirigentes alvinegros. Chame de elitismo, preconceito, racismo, atraso ou amadorismo; no fundo, o nome verdadeiro disso é burrice, a inextinguível burrice humana, que jamais foi exclusiva daquela época e muito menos do Botafogo – eis a Federação Carioca que não nos deixa mentir.

Mas, se nem as atuações de Paulo Victor ganham nota dez nos jornais, também se pode achar imperfeições no livro. Por isso o “quase” lá em cima no título.

O autor se arrisca ao insistir num argumento que, ao meu ver, não consegue provar: a de que o Flamengo precisou apagar sua história antes dos anos 1930 para ganhar a massa. O Flamengo teria se reinventado, rescrito sua história de 1895 a 1930 e forçado uma vocação natural para ser popular que jamais existira em seu passado de “clube fidalgo”. Não sei, mas uma agremiação onde remadores perambulavam pelados pela sede, entre outras libertinagens, era mesmo assim tão fidalga? Se o clube era frequentado pela elite, nada prova que suas cores não fossem vistas com simpatia por cariocas de todos os cantos. Pelo contrário, aliás.

Em 1917, João do Rio, notório autor de “A alma encantadora das ruas”, cronista do povão e dos vagabundos do Rio, decidiu testemunhar e relatar, no jornal “O Paiz”, o que era um jogo do Flamengo. E partiu com amigos para ver uma partida contra o Fluminense, que reuniu mais de 6 mil espectadores e onde “500 automóveis buzinavam, bufavam, sirenavam”. É João do Rio que indica, já em 1917, a tal vocação natural do clube que sempre deixou ser amado:

“E o Clube de Regatas do Flamengo foi o núcleo de onde irradiou a avassaladora paixão pelos esportes (…) O povo encheu-se de simpatia”. Mais adiante, arremata: “Tenho assistido a meetings colossais em diversos países, mergulhei no povo de diversos países, nessas grandes festas de saúde, de força e de ar. Mas absolutamente nunca eu vi o fogo, o entusiasmo, a ebriez da multidão assim. Só pensando em antigas leituras, só recordando o Coliseu de Roma e o Hipódromo de Bizâncio.” O placar? Mengão 4 a 1, como de hábito.

Mas o livro é realmente muito bom, e um dos melhores que já li sobre o Flamengo, certa vez apelidado de “o clube que não se explica”. Renato Soares Coutinho talvez tenha sido quem chegou mais perto até hoje.